Decisão de Dino pode dar fôlego novo a processos sobre crimes da ditadura, diz Eugênia Gonzaga
Ainda não é a decisão que a procuradora regional da República gostaria, mas é um avanço importante. É desse modo que Eugênia Gonzaga, atual presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e há 23 anos atuando com justiça de transição, avalia a decisão tomada recentemente pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, na qual ele abre a possibilidade de que os crimes de ocultação de cadáver não sejam protegidos pela Lei da Anistia.O crime de ocultação de cadáver é considerado um crime permanente, pois continua acontecendo no presente enquanto o corpo não for encontrado e os fatos devidamente esclarecidos. Criada em 1979, a Lei da Anistia exime de punição autores de crimes políticos e outros relacionados que tenham sido cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, período que abrange boa parte da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).Em 2010, o STF reafirmou a interpretação da Lei da Anistia que impede a punição de militares e agentes civis que cometeram crimes na ditadura, incluindo tortura e ocultação de cadáver. Em sua decisão, publicada no último domingo (15), Dino reabre o debate sobre a abrangência da lei especificamente nos casos da ocultação de corpos. Para Eugênia Gonzaga, a decisão de Dino se insere num momento propício, considerando o contexto da tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, as prisões de militares envolvidos com a trama que incluía até o assassinato do presidente Lula e a repercussão do filme Ainda estou aqui, que conta a história do desaparecimento do deputado Rubens Paiva.“Apesar da gente já ter tido vários filmes também muito bons, esse é de uma qualidade extraordinária e está tendo uma receptividade muito grande no mundo inteiro. Então o Brasil está no foco”, avalia. A procuradora também acredita que a imagem ruim que o STF deixou com a decisão de 2010 também colabora para que agora haja um outro entendimento. “A omissão do Supremo ficou péssima. O Supremo ficou num papel muito ruim desde que decidiu favoravelmente a Lei da Anistia e depois paralisou todos esses processos.”Embora diga que a decisão de Flávio Dino não é a melhor e nem a mais avançada, a presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos diz que ela faz um recorte muito importante na decisão do STF de 2010 e abre as portas para que haja a continuidade da discussão de muitos casos de sequestro e ocultação de cadáver. Ainda assim, ela destaca que o ideal mesmo seria o Brasil cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para quem crimes cometidos com graves violações de direitos humanos não são abrangidos pela Lei da Anistia.Se confirmada pelos outros ministros do STF, a decisão de Dino pode reabrir dezenas de processos, embora o número de desaparecidos políticos reconhecidos por lei seja em torno de 200 pessoas, sem contar milhares de indígenas e camponesas que também foram vítimas dos anos de chumbo. “O Ministério Público Federal entrou com mais de 50 denúncias e tem vários casos de desaparecimentos. Acho que esses casos vão ganhar um fôlego novo. Até acho difícil abrir novos processos, mas vai ser mais fácil a gente conseguir dar andamento para os casos que já estão analisados”, explica Eugênia. Ela acredita ser difícil abrir novos processos devido à morte dos prováveis assassinos e ocultadores dos corpos de vítimas da ditadura. A decisão do ministro Flávio Dino dá provimento a um recurso no processo que trata da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2015, contra os ex-militares do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, e o tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel. Ambos estiveram à frente de operações contra militantes de esquerda que organizaram uma guerrilha de resistência contra a ditadura, na região do Araguaia, famosa como a “Guerrilha do Araguaia”, na primeira metade da década de 1970, período de maior repressão política e autoritarismo no País, comandado pelas Forças Armadas. O processo se refere a André Grabois e seu caso tramita na Justiça do Pará por homicídio e ocultação de cadáver, sendo que a decisão de Dino se refere apenas à ocultação do corpo. O processo foi inicialmente recusado na primeira instância da Justiça. O Ministério Público Federal então recorreu e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) acolheu o recurso. A seguir, foi a vez dos réus entraram com recurso extraordinário, agora julgado por Dino no STF. Se os outros ministros do Supremo seguirem o mesmo entendimento, então o caso voltará a tramitar na justiça paraense.A procuradora explica que o Brasil, quando assinou a Constituição de 1988, submeteu-se às decisões internacionais em matéria de direitos humanos e, por isso, o País deve cumprir a decisão da Corte Interamericana que determinou que crimes de graves violações de direitos humanos não estão protegidos pela Lei de Anistia. “O Brasil se comprometeu a cumprir essas decisões, mas o judiciário, por conta dessa postura do Supremo Tribunal Federal, ainda não está cumprindo completamente essa decisão da corte.”Em sua decisão, Dino diz que: “O debate do presente recurso se limita a definir o alcance da Lei de Anistia em relação ao crime permanente de ocultação de cadáver. Destaco, de plano, não se tratar de proposta de revisão da decisão da ADPF 153, mas sim de fazer um distinguishing [distinção] em face de uma situação peculiar. No crime permanente, a ação se protrai [prolonga] no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”.Segundo ele, o tipo penal atribuído aos militares neste contexto persiste no tempo. “O crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática crime, bem como situação de flagrante”, acrescentou.Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas ligadas à Guerrilha do Araguaia. O tribunal internacional determinou que o Brasil investigasse, processasse e punisse os agentes estatais envolvidos e que localizasse os restos mortais dos desaparecidos.O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, revelou que o Major Curió coordenou um centro clandestino de tortura conhecido como Casa Azul, em Marabá, no sul do Pará, e atuou também no Tocantins, de forma clandestina, na investigação e captura de militantes contrários à ditadura durante a guerrilha. Sebastião Curió morreu em 2022 e chegou a ser recebido pelo então presidente Jair Bolsonaro no gabinete presidencial, em 2020. Comissão de Mortos e Desaparecidos PolíticosExtinta pelo governo de Jair Bolsonaro em dezembro de 2022, semanas antes do final do mandato, a Comissão foi recriada pelo governo Lula em agosto deste ano. Eugênia Gonzaga diz ter boas expectativas com a retomada dos trabalhos.“É muito triste esse período em que a Comissão ficou completamente parada. Por outro lado, isso gerou uma mobilização em torno da retenção da Comissão, muitos parlamentares vieram apoiar e pedir a sua recriação”, recorda. “Apesar de todos estes momentos de horror que a gente vem passando, com tentativas de golpe, a recriação da Comissão ocorre num momento favorável e temos que aproveitar e dar cumprimento ao plano de trabalho.”O plano de trabalho pelos próximos dois anos está feito, assim como a captação de recursos por meio de emendas parlamentares. A primeira audiência pública está marcada para fevereiro de 2025, em Recife, onde é possível que haja novas informações sobre desaparecidos políticos da ditadura que violentou o Brasil por 21 anos. Fonte: Sul 21 / Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado