Notícia SINASEFE IFSul

28 de março 2023

Com um olho no passado e outro no futuro, Biblioteca Pública tem nova diretora

Com um olho no passado e outro no futuro, Biblioteca Pública tem nova diretora A Biblioteca Pública do Estado (BPE) do Rio Grande do Sul está sob nova direção. E, pela primeira vez em seus 151 anos, estará sob o comando de uma mulher negra. Oficialmente desde o dia 11, e na prática desde o final de fevereiro, Ana Maria de Souza tem o desafio de ampliar, qualificar e tornar mais atraentes os serviços prestados em um dos locais mais importantes da história do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que também caberá a ela a responsabilidade de zelar por grande parte dessa memória. Nesta semana, o Sul21 conversou com Ana sobre a trajetória que a levou ao cargo e as expectativas para o futuro da BPE.Bibliotecária formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 1996, Ana Maria teve uma trajetória destacada na BR Distribuidora, empresa na qual ingressou logo após concluir a graduação e teve passagens por diversas áreas, o que a levaria para muito além do trabalho com os livros.Em 1999, aos 29 anos, assumiu o posto de coordenação na biblioteca da estatal, o primeiro cargo de gestão de sua vida, ainda na área de Biblioteconomia. Em 2003, assumiu uma posição responsável pela gestão de documentos e organização dos acervos administrativos da empresa. Ao se destacar nestes trabalhos, foi convidada a dar um salto para o setor de recursos humanos da área operacional da empresa, que era responsável por 30% de todo o quadro funcional da BR Distribuidora. “Fazíamos todas as rotinas referentes aos recursos humanos, desde o treinamento”, conta.
Posteriormente, recebeu um convite para atuar no setor de regulação, que tinha o objetivo de garantir que todas as unidades operacionais da empresa tivessem com as autorizações devidas para operar junto à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), um trabalho de gestão que, em suas palavras, a demandava de “segunda a segunda”, muitas vezes até mesmo de madrugada. “Se acontecesse algum sinistro em alguma base aqui no Brasil, eu tinha 4 horas para fazer o reporte à ANP”.Em 2019, a empresa foi privatizada e lançou um programa de demissão voluntária (PDV), ao qual Ana acabou aderindo. A sua saída da estatal seria concretizada no fatídico março de 2020. “Eu saí da empresa no meio da pandemia, aquela loucura toda”, diz.O Rio Grande do Sul entraria na vida de Ana junto com o retorno para a área de Bibliotecomia, em 2021, quando foi lançado um concurso do governo do Estado para a área. Aprovada em junho de 2022, chegou ao Estado no segundo semestre do ano passado, inicialmente para atuar na supervisão das três bibliotecas da Casa de Cultura Mário Quintana. “Vim para cá de mala e cuia. Um amigo disse que não vim de cuia, porque carioca não tem cuia”.
Ritmo acelerado e atenção aos detalhesApesar de dizer que foi uma apaixonada por livros e se descrever como “ratinha de biblioteca” desde criança, o silêncio e o ritmo lento que costumam ser associados a esses espaços não combinam com a profissional que Ana Maria de Souza se tornou após os 21 anos de cargos de gestão na BR Distribuidora.A primeira coisa que fez ao ocupar o cargo na Casa de Cultura foi observar as possibilidades de melhorias e de qualificação que poderia trazer para o espaço.“Eu comecei a trabalhar com o meu ritmo, bastante puxado, com bastante pressão, com bastante cobrança, que para mim é normal, tá no sangue já, e eu comecei a produzir demais”, diz. “Tinha questões estruturais que estavam lá com problemas, com a oportunidade de melhoria por 30 anos e em dois meses e meio de estado eu consegui sanar”. Uma das primeiras coisas que chamou a sua atenção foi o fato do balcão principal da biblioteca infantil Lucília Minssen não ter espaço para os funcionários colocarem suas pernas. Por ser muito apertado, fazia com que eles precisassem sentar “meio de lado”.Ana conta que, ao mesmo tempo em que procurou a Secretaria de Cultura (Sedac) para realizar as melhorias, já começou a elaborar um projeto para captar recursos em caso de negativa. O mesmo aconteceu na biblioteca Érico Veríssimo, que tinha o balcão tomado por cupins e o piso ameaçando ceder. “Se você for lá na Érico Veríssimo hoje, vai ver que a biblioteca está toda em obras”.É justamente ao ritmo acelerado e à atenção aos detalhes que ela credita o convite, antes mesmo de completar um ano no serviço público gaúcho, para assumir o comando da biblioteca mais importante do Estado.“Eu só trabalhei, eu não fiz nada além de trabalhar. E isso chamou a atenção, de que o meu perfil era adequado para as oportunidades de melhorias aqui na BPE”.
Ampliar e fomentar a leituraAna foi nomeada para o cargo de diretora em 11 de março, mas já estava “sentada na cadeira” desde 27 de fevereiro. Ela substitui uma das pessoas em cargo de direção mais longevas do Rio Grande do Sul contemporâneo, sua antecessora Morganah Marcon, que estava há 20 anos no cargo, passando por governos de diversas matizes ideológicas.A mudança, depois de tantos anos, gerou preocupação entre frequentadores e setores da cultura gaúcha, especialmente quanto ao trabalho de preservação da memória do Estado que é de responsabilidade da biblioteca pública. A casa armazena, por exemplo, muitos dos mais relevantes documentos oficiais da história do RS. Abriga também um acervo de 32 mil volumes — o que incluiu o acervo original de 1871 –, que só podem ser acessados para pesquisa no local, manuseados com luva e com acompanhamento de historiadores.A nova diretora diz que está ciente das preocupações. “O povo gaúcho pode ficar bem tranquilo que a nova diretora tem consciência plena da importância desse acervo, como essa questão cultural do gaúcho é forte. Eu acho muito lindo como o gaúcho trata sua história, seu folclore, sua cultura, e vou cuidar com todo o carinho.”Ela garante que os serviços adequados serão mantidos e que trabalhará para ampliar e qualificar o que porventura tiver deficiências ou apenas puder ser melhorado e qualificado. Uma das primeiras melhorias de sua gestão, que já está em fase de execução, é a catalogação digital da gibiteca da BPE.“A nossa gibiteca é muito conhecida. Para você ter uma ideia, foi o primeiro grupo que eu atendi depois que cheguei. Eles estavam preocupadíssimos que nós não fôssemos continuar e eu falei para eles que isso não aconteceria em hipótese alguma”, disse.
A ideia de Ana é potencializar todos os espaços que forem possíveis da BPE. Isso passa pela a realização de eventos, clubes de leitura e mesmo a locação de espaços, o que gera receita para ajudar em pequenas reformas e compra de insumos necessários para o trabalho do dia a dia.“É um espaço maravilhoso, é um espaço de literatura, é um espaço que carrega a história do Rio Grande do Sul, carrega a história do Brasil, tamanha a importância do Rio Grande do Sul na história do país. Nós tivemos épocas em que os governadores despachavam daqui. Nós temos aqui a Sala Borges, de onde o Borges de Medeiros despachava”, diz. “Eu percebi, no pouco tempo que estou aqui, que é uma casa da qual as pessoas têm orgulho, é um prédio que é muito lindo, é também um ponto de visita das pessoas que vem para cá para tirar fotos”.Apesar de ponderar que ficou até surpresa com a quantidade de usuários da BPE, Ana acredita que é possível atrair mais público, do jovem ao mais maduro. “A gente quer que as pessoas estejam se apropriando mais e mais dos espaços da biblioteca e que usem esse prédio como inspiração para ler mais, para se formar e se informar melhor. É um desafio, óbvio, porque a gente está aqui disputando com redes sociais, com jogos eletrônicos, mas é por isso que é um desafio. Se fosse fácil, não precisaria mudar. E você faz muito isso com eventos, com divulgação. Nós vamos melhorar muito essa parte de comunicação da biblioteca com o público. Nós estamos trabalhando já em um projeto de reestruturação da página, de ter um canal mais próximo nas outras redes sociais”, afirma.Uma das crenças da bibliotecária é de que espaços como a BPE, nessa disputa inglória com o digital, têm o papel de contribuir para a formação qualificada das pessoas e para a disseminação de informação de qualidade. “A gente tem que trabalhar com essa questão da disseminação para que as pessoas sejam melhor formadas, para que elas sejam preocupadas em procurar informação com fonte segura. E a gente está falando também das pessoas melhorarem suas condições de vida através da leitura e da literatura, de ter conhecimento, ter formação social, formação política.”Para enfrentar esses e outros desafios, nos próximos meses, pretende lançar uma pesquisa junto aos usuários para entender o que pode ser feito para qualificar e aprimorar os serviços da BPE. “Mas, com relação à memória, não tem porque ter dúvidas, porque ela está no sangue e é uma das missões da biblioteca a preservação da memória no Estado do Rio Grande do Sul”.
A primeira negra no cargoAna Maria de Souza é a primeira negra a assumir o cargo de diretora nos 151 anos da Biblioteca Pública do Estado. Um fato que ela própria desconhecia quando recebeu o convite e confessa que a assustou quando viu ser repercutido. Ela frisa que a história de sua chegada ao cargo, ao seu ver, deve ser pautada pela qualificação e formação.“O tom da minha pele não foi uma questão quando o convite chegou a mim. O convite chegou por conta da minha capacidade de entrega, por conta da minha capacidade de realização, por conta do meu currículo e por conta das minhas habilidades, habilidade social, habilidade de gestão de pessoas, capacidade de gestão, é por isso que eu fui convidada para essa posição. O fato de eu ter a pele retinta é só um detalhe”, diz. “Claro que eu não posso deixar de reparar, de prestar atenção, no fato de eu ser a primeira diretora negra da BPE-RS. Isso fala da importância do acesso à educação para a população negra. É exclusivamente por meio de formação acadêmica, preparo que os negros vão conseguir ascensão e vão conseguir assumir os cargos que eram majoritariamente ocupados por pessoas brancas”.
Por outro lado, reconhece que a sua chegada ao cargo é, sim, um marco histórico e que alimentou a importante discussão em torno das dificuldades de acesso da população negra a cargos de liderança. “Eu quero dizer para as meninas que estão na academia ou no ensino médio e estão se perguntando se vale a pena estudar: vale, vale a pena, sim. Porque se os negros são mais escrutinados pelo tom da pele, que seja, mas a gente vai mostrar ao mundo que a gente está preparado para enfrentar isso”.
Foto: Secretaria da Cultura Fonte: Sul21

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