Notícia SINASEFE IFSul

25 de junho 2019

Modelo policial contribui para aprofundar racismo estrutural e desigualdade no Brasil, diz antropólogo

Um paradoxo marca a situação da segurança pública no Brasil hoje. Segundo o último Atlas da Violência, em 2017, o país teve 65.700 homicídios dolosos. As principais vítimas são jovens negros pobres moradores de periferias. Não há números precisos sobre o esclarecimento desses crimes, mas, tomando o padrão da última década, esse índice está na casa dos 8%. Temos, então, cerca de 92% de não esclarecimento em relação aos crimes mais graves. No entanto, ao contrário do que parece, isso não transformou o Brasil no País da impunidade. Paralelamente, o País está encarcerando em massa e em grande velocidade, a ponto de já ter hoje a terceira população penitenciária do mundo. E o subgrupo que mais cresce dentro do sistema penitenciário são jovens de periferia, homens e mulheres.Essa realidade está diretamente associada ao modelo policial e de segurança pública vigente no país. Essa é uma das teses centrais do livro “Desmilitarizar” (Boitempo), do antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança, Luiz Eduardo Soares, que traça um diagnóstico sobre a situação da segurança pública no Brasil, a partir de quatro eixos temáticos: polícia, drogas, raízes da violência e direitos humanos.“As principais vítimas desse processo genocida em curso no Brasil são jovens negros pobres moradores de territórios vulneráveis. É um processo trágico em relação ao qual temos sido lenientes e tolerantes enquanto nação. Temos aceitado conviver com o inaceitável e o intolerável porque a imensa maioria das vítimas é pobre e negra”, diz Luis Eduardo Soares, em entrevista ao Sul21. O autor lança seu livro nesta terça-feira (25), às 18h30min, no Shopping Olaria, em Porto Alegre,  numa atividade promovida pelo Instituto Novos Paradigmas (INP) e pela Livraria Bamboletras.
Sul21: O seu novo livro, “Desmilitarizar”, faz um diagnóstico de problemas crônicos da segurança pública no Brasil. Como resumiria a situação da segurança e da atuação das polícias hoje no país?Luiz Eduardo Soares: O livro reúne uma série de diagnósticos sobre a situação da segurança pública do país, sobre as polícias brasileiras e, de um modo mais geral, sobre a arquitetura institucional da segurança pública que inclui o nosso modelo policial e outros aspectos do sistema nacional de segurança. Além dos diagnósticos, apresenta uma série de propostas de mudanças na arquitetura institucional e no modelo policial.Quanto aos diagnósticos, o que se observa é que temos um conjunto de instituições que estão super-explorando a sua força de trabalho, que são os policiais, com salários indignos e condições de trabalho indignas. Por outro lado, essas instituições estão prestando um serviço que está longe de ser adequado e suficiente. Pelo contrário, as instituições estão contribuindo para o aprofundamento do racismo estrutural e das desigualdades no Brasil.
Sul21: Quais são, na sua avaliação, os principais problemas envolvendo esse modelo militarizado da polícia?Luiz Eduardo Soares: O principal problema está relacionado aos homicídios, que são os crimes mais graves. Segundo o último Atlas da Violência, com informações relativas a 2017, nós tivemos 65.700 homicídios dolosos. O número desses casos que chega a ser investigado é muito limitado. O fato de não sabermos qual é a taxa de esclarecimento de homicídios dolosos no Brasil já é em si mesmo um sintoma da precariedade das nossas instituições. Temos apenas números aproximados. Tomando o padrão brasileiro da última década, nós temos apenas cerca de 8% de esclarecimento. Temos, então, cerca de 92% de não esclarecimento em relação aos crimes mais graves. Ou seja, de cada dez homicídios dolosos, nove permanecem impunes.Temos, porém, um paradoxo aí. Ao contrário do que parece, isso não transformou o Brasil no país da impunidade. Paralelamente, estamos encarcerando em massa e em grande velocidade, a ponto de já termos hoje a terceira população penitenciária do mundo e a que cresce mais velozmente desde o início deste século. Estamos chegando a 800 mil presos. Então, se por um lado, temos impunidade relativamente a homicídios, por outro lado, não tempos impunidade porque somos campeões em encarceramento. Daí se deduz que há alguma coisa errada, há uma inversão de prioridades.
Sul21: Qual a natureza dessa inversão de prioridades?Luiz Eduardo Soares: Há duas questões a destacar aí. Em primeiro lugar, os números do Atlas da Violência relativos a 2017 mostram que cerca de 75% das vítimas são negras. Estamos falando de um número extraordinariamente elevado de vítimas negras. As principais vítimas desse processo genocida em curso no Brasil são jovens negros pobres moradores de territórios vulneráveis. É um processo trágico em relação ao qual temos sido lenientes e tolerantes enquanto nação. Temos aceitado conviver com o inaceitável e o intolerável porque a imensa maioria das vítimas é pobre e é negra. Se esse processo atingisse sobretudo a classe média, já teríamos tomado providências muito profundas. Naturalizamos esse processo de genocídio e por isso as coisas continuam sendo como são.
Em segundo lugar, se nos debruçarmos sobre o sistema penitenciário veremos que o subgrupo que cresce mais celeremente neste universo em expansão acelerada é formado por aqueles que cumprem pena ou estão lá sob acusação de tráfico de drogas. Já são 28% do conjunto. Se observarmos apenas o universo prisional feminino, esse subgrupo corresponde a 62%. Quais são esses traficantes que estão sendo presos? Não são os grandes e poderosos traficantes, mas, sobretudo, os pequenos varejistas. Em geral são presos sem portar arma e sem praticar violência e sem vínculo conhecido com organização criminosa. Estamos jogando para dentro do sistema penitenciário uma juventude fragilizada, com dificuldade de inserção no mercado de trabalho que busca o negócio da droga ilícita para fazer o seu ganho diário, mas não é violenta e não está envolvida com o crime.Essa juventude está sendo jogada em massa, aos milhares, para dentro do sistema, onde acabam se vinculando a uma facção criminosa para sobreviver no sistema. Quando eles saem, as facções lhes cobram lealdade. É o preço a pagar pela proteção dentro do sistema. Estamos contratando violência futura ao preço da destruição da vida de jovens e com fortalecimento das facções criminosas que tem a sua disposição força de trabalho barata. É isso que o encarceramento em massa está fazendo, aprofundando o racismo estrutural e as desigualdades no país. Isso está acontecendo independente da vontade desta ou daquela autoridade. Há um conjunto de mecanismos que vão se reproduzindo mais ou menos inercialmente.
Sul21: Que mecanismos são esses?Luiz Eduardo Soares: A Polícia Militar é a mais numerosa, estando presente no país inteiro, atuando 24 horas por dia. Ela é pressionada a produzir pelos governantes, pelos seus comandos e pela opinião pública. E, em geral, produção é entendida por ela como prisão. Ela é pressionada a prender, mas é proibida de investigar pelo artigo 144 da Constituição. Ora, se ela é proibida de investigar e é pressionada a prender, o que resta a fazer é prender em flagrante delito. Para prender em flagrante delito, ela tem diante de si um conjunto limitado de crimes, que estão longe de ser os mais importantes, mas os mais perceptíveis aos cinco sentidos. Assim, toda a energia da segurança pública, os recursos humanos e materiais se concentram nos crimes passíveis de identificação em flagrante delito.A lei de drogas é a grande ferramenta da Polícia Militar para realizar esse trabalho. Ela é uma espécie de rede de pesca que se joga para que se pesquem os bagrinhos, como dizemos no Rio de Janeiro. São os pequenos varejistas, que são acessíveis à peneira da PM. O resultado disso é encarceramento em massa, aprofundamento das desigualdades, criminalização da pobreza, alimentação do racismo e fortalecimento das facções. Isso tudo ocorre em detrimento da segurança pública. O que tentamos provar é isso: temos no Brasil a combinação perversa entre o modelo policial e a lei de drogas. Deixamos a violência extrema impune, tratamos do secundário, nos fixamos na droga, prendemos apenas em flagrante e nos encaminhamentos na direção da insensatez.
Sul21: No caso do Rio de Janeiro, além da militarização da atividade policial, temos, mais recentemente, também o fenômeno da para-militarização com o surgimento das milícias. As milícias podem ser consideradas como um subproduto desse modelo?Luiz Eduardo Soares: Exatamente. É um subproduto. Quando a autoridade autoriza o policial na ponta a matar, sem impor nenhum tipo de limite ou de custo para essa prática, se transmite a esse policial a possibilidade de matar ou não matar. Essa decisão entre fazer e não fazer se converte numa moeda poderosíssima que inflaciona rapidamente. Ela vai ser negociada nas esquinas, nos becos e nas vielas todos os dias, num grande varejo muito aquecido economicamente. Isso se torna um instrumento de coação e chantagem extremamente poderoso que vira uma moeda que se inflaciona.A autorização para matar acaba, assim, sendo uma grande fonte de degradação e de corrupção na polícia. Acabam se formando, na ponta, nichos que se autonomizam em relação à instituição, gerando um ambiente de anarquia institucional. Essas milícias vão conquistando territórios e impondo taxações a todas as atividades econômicas que ocorrem nestas áreas sob seu controle. Isso só é possível com essa política que autoriza a ilegalidade e acaba promovendo a anarquia institucional.
Sul21: Nos últimos anos têm se verificado uma resistência muito grande, dentro das instituições policiais, a esse debate sobre a desmilitarização. Imagino que essa situação só tende a piorar com o atual governo, tanto em nível federal quanto em estados como o Rio de Janeiro onde o governador apoia a execução sumária de pessoas. Qual o ambiente institucional que existe hoje para fazer esse debate no Brasil, se é que há um?Luiz Eduardo Soares: É o pior possível. O livro surge na contramão dessa tendência predominante, mas os livros e as ideias não morrem. A gente espera que um dia o Brasil saia dessas sombras. É preciso que haja horizontes já constituídos e formulados, que ajudem a retomada de um caminho democrático. É preciso ser realista. Hoje não há uma correlação de forças apropriada para avançar. Por outro lado, vamos construindo a resistência e a produção de alternativas.
Fonte: Sul 21