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24 de junho 2019

"Elas são tratadas como se fossem públicas": estudo aborda vivências de mulheres em situação de rua

O quanto a questão do gênero perpassa as dificuldades vivenciadas por mulheres em situação de rua? Quais são os movimentos feitos por elas em diferentes espaços das cidades? Essas são algumas das questões abordadas pela geógrafa Talita Fernandes Gonçalves na dissertação ‘Rua, substantivo feminino: mulheres em movimento e o direito ao corpo na cidade’, que acompanhou e entrevistou mulheres em situação de rua que vivem em Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul.O tema a ser pesquisado no Metrado surgiu para Talita em 2017, enquanto ela finalizava o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para a graduação em Geografia, na Universidade do Ceará. Durante o estudo, que também tinha como tema a população em situação de rua, Talita ouviu de um homem que era mais fácil para uma mulher estar na rua porque, segundo ele, “as mulheres já nascem com o ganha pão”. “Para ele era mais fácil se prostituir do que fazer qualquer outra coisa para ganhar dinheiro. Essa frase foi decisiva para eu trazer a questão do gênero para o Mestrado”, conta Talita.Assim, a geógrafa resolveu discutir em uma mesma pesquisa a relação entre corpo e cidade, mas também entender como o gênero influencia e modifica as vivências que as mulheres têm ao estarem em situação de rua. Embora tenha concluído o Mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2018, a geógrafa entrevistou mulheres em situação de rua que viviam em Pelotas, cidade em que ela também morava na época. Ao todo, oito mulheres, com idades entre 22 e 55 anos, compartilharam suas vivências com a pesquisadora.Ela explica que, inicialmente, pretendia fazer uma pesquisa etnográfica, ou seja, acompanhar essas mulheres e ir anotando em um diário todas as situações que vivenciassem durante esses momentos. “Só que, tanto por eu ser nova em Pelotas, quanto pela própria dinâmica da rua, acabava que eu não conseguia manter um contato contínuo com elas”, explica. Dessa forma, Talita acabou conseguindo acompanhar, durante dez meses, a rotina de apenas uma das oito mulheres. Com as outras sete, realizou entrevistas para saber como eram as vivências delas nas ruas, quais dificuldades enfrentavam e suas histórias de vida.De acordo com a geógrafa, não é possível apontar uma única razão que leve as mulheres à situação de rua. “Elas estão lá por diversos motivos. Das mulheres que eu entrevistei pro Mestrado, algumas foram para a rua porque tinham problemas com drogas e saíram da casa dos familiares para não incomodar; outras por questões de violência. Teve uma que contou que ficou em situação de rua porque a casa dela foi invadida por traficantes e ela foi expulsa de casa, e nunca o poder público conseguiu fazer nada. Os motivos são múltiplos”, diz. Ainda de acordo com a pesquisadora, há estudos que apontam a violência doméstica como um dos motivos que fazem com que as mulheres saiam de suas casas.
Gênero e violênciasDentre as oito histórias de vida que as entrevistadas compartilharam com a geógrafa, ela encontrou um ponto em comum, que está presente na rotina de muitas mulheres em situação de rua: a violência sexual. “Elas sofrem essa violência sexual por parte de homens que também estão em situação de rua e por parte de homens da sociedade em geral, que estão passando na rua, as veem ali e as violentam. Elas são tratadas como se fossem públicas por estarem na rua”, afirma.Talita também observou outro ponto em comum entre as vivências dessas mulheres. De acordo com a geógrafa, muitas delas acabam precisando encontrar um companheiro para se sentirem menos vulneráveis à violência das ruas. Entretanto, muitas vezes, passam a sofrer violências provocadas pelo próprio companheiro. “Há essa relação paradoxal em que, às vezes, elas precisam escolher passar pela violência de um homem só para não serem violentadas por vários”, explica a geógrafa.De acordo com Talita, a opinião de que as mulheres em situação de rua precisam de um homem para estarem seguras era comum entre praticamente todas suas entrevistadas. “A maioria dizia ‘para mulher é mais difícil’, ‘a gente tem que ter um homem para proteger, não dá pra ficar na rua sozinha’, elas diziam que o homem fica na rua sozinho, mas a mulher não poder”, conta. Além disso, a geógrafa pontua que, ao mesmo tempo, as mulheres carregavam consigo a ideia de que uma mulher é culpada por sofrer alguma violência sexual.
Corpos interditadosDesde o TCC, Talita estuda a relação entre o corpo e a cidade. Na dissertação, a geógrafa buscou entender como as mulheres em situação de rua vivenciam a corporalidade nos espaços urbanos. Ela explica que o estudo do corpo na construção do espaço físico é algo recente dentro da Geografia: “É o reconhecimento do corpo como escala de ação no espaço. Muitas vezes a gente fala da escala do urbano, do regional, do nacional, mas antes disso tudo tem a escala do corpo”.Segundo ela, alguns corpos vão ser lidos de maneiras diferentes pela sociedade. “A vertente que eu trabalho entende que a cidade é um espaço colocado como masculino e branco, então as corporalidades que são dissidentes disso não vão ter o tratamento que os corpos brancos e masculinos têm. As mulheres, as mulheres negras, os homens negros, somando-se a questão de classe, ou seja, corpos pobres, possuem possibilidades diferentes”, explica Talita.
Ela também observou, a partir das vivências de suas entrevistadas, que as mulheres em situação de rua, além de terem o direito à cidade negado em algumas situações, também têm o direito ao seus corpos interditado. “Existem interdições corpóreas, que, no caso das minhas entrevistadas, se mostrou na questão da violência sexual, de terem seu corpo invadido pelos homens. Mas são violências que não só sexuais, são também agressões físicas”, diz.
A geógrafa afirma que essa interdição também ocorre por agentes do Estado, quando, por exemplo, é negado a essas mulheres o direito de serem mães, seja por meio de uma cirurgia de laqueadura forçada ou ao não poderem criar seus filhos por estarem em situação de rua.
Mulheres em movimentoNo título, a dissertação de Talita traz a expressão ‘mulheres em movimento’, que, segundo ela, é uma forma de tentar utilizar um termo que não estigmatizasse a população de rua e também falasse sobre os movimentos que as mulheres criam com seus corpos nas cidades. “Essas mulheres constituem a vida delas colocando seus corpos em movimento nas cidades por diversos motivos. Tinha mulheres que, por exemplo, guardavam carro com o marido, mas de manhã iam buscar os filhos na casa da mãe; levavam cada um numa escolinha diferente, no final da tarde buscavam, passavam um pouco com eles, depois levavam para a casa da mãe e voltavam para guardar carro”, conta.Talita aponta que os movimentos feitos pelas mulheres em situação de rua nem sempre são opcionais. De acordo com a geógrafa, muitos dessas locomoções são feitas de maneira compulsória. “Elas têm uma vida em constante movimento, mas que não é só voluntário Às vezes elas não podem ficar muito tempo num mesmo lugar porque o comércio local vai rechaçar, porque a polícia ou o segurança privado vai dizer que elas têm que sair, vai expulsar ou tirar os pertences delas”, explica. Segundo Talita, algumas mulheres precisam, por exemplo, adotar o movimento estratégico de não dormir diariamente no mesmo local para não ficar conhecida entre os outros moradores em situação de rua da região.
Fonte: Sul 21

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